terça-feira, 18 de junho de 2013

Contextualização histórico-literária da obra "Dom Casmurro", de Machado de Assis




Dom Casmurro foi publicado em 1889. O Realismo teve início na Europa, especificamente na França, com a publicação de Mme. Bovary, de Flaubert, em 1857. No Brasil, o próprio Machado de Assis seria o primeiro autor a publicar uma obra realista: “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, em 1881, o mesmo ano do começo oficial do Naturalismo no Brasil com a publicação de O Mulato, de Aluísio Azevedo.

Machado de Assis tem um Realismo próprio. Não se pode afirmar que sua obra não seja realista, pois apresenta muitas características desta escola literária. Entretanto, Machado tem um forte estilo próprio e se recusa a se submeter a muitas das regras impostas pelo Realismo ou pelo Naturalismo que, como sabemos, ocorreram concomitantemente no Brasil.

A obra de Machado de Assis pode ser dividida em três momentos. Em um primeiro momento tem-se um Machado romântico, o “Machadinho” de Augusto Meyer. Pode-se dizer que os romances dessa fase, Ressurreição (1872), A mão e a luva (1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878), são romances predominantemente românticos. Já se percebia em Machado de Assis uma abordagem diferenciada em relação e essa escola literária. A própria temática desses romances já era um tanto quanto realista: Lúcia Miguel-Pereira define essa fase de Machado como a “fase da ambição”, pois esse seria um tema recorrente naqueles romances. A análise psicológica das personagens já estaria também presente nessas obras, mas o autor ainda estaria preso às convenções do Romantismo, talvez pela insegurança em inovar, em escrever de forma diferente da de outros artistas da época, pela timidez em expressar o seu temperamento tal como era. O Romantismo de Machado também era um Romantismo modificado: é claro o esforço do autor em se conter, um exemplo é a forma como descreve Guiomar, como já sabemos, “ambiciosa, mas pura de coração”, etc.

No entanto o autor não se conteria para sempre. Em 1880 com as primeiras publicações das Memórias Póstumas de Brás Cubas, a produção de Machado de Assis entraria em seu segundo momento: o autor se tornaria realista, mas como já dissemos, de um Realismo próprio, peculiar. Quincas Borba também faz parte desse segundo momento. Sobre Memórias Póstumas de Brás Cubas já sabemos o bastante.

Dom Casmurro, Esaú e Jacó e Memorial de Aires também são obras realistas, mas o estilo do autor na produção desses romances se modifica sensivelmente e, a partir de Dom Casmurro, Machado passa a demonstrar uma tendência ao impressionismo como estilo. É sabido que o impressionismo na arte é uma técnica na qual o artista, abandonando contornos mais corretos e definidos, produz suas representações por meio de pinceladas mais livres de forma que o observador só poderá ter uma ideia da obra ao admira-la em conjunto, distanciando-se dela. É interessante notar que o nome desse movimento originou-se, ou melhor, definiu-se a partir de uma crítica feita pelo pintor e escritor Louis Leroy à obra “Impressão - Nascer do sol” de Claude Monet:"Impressão, nascer do Sol” – eu bem o sabia! Pensava eu, justamente, se estou impressionado é porque há lá uma impressão. E que liberdade, que suavidade de pincel! Um papel de parede é mais elaborado que esta cena marinha”. Apesar de ter sido usada de forma pejorativa a expressão foi adotada pelos artistas que faziam uso dessa técnica, pois eles anteviam que essa era a nova tendência.

O impressionismo no estilo de Machado de Assis consiste nessa sua tendência a dar pequenos indícios das situações, dos sentimentos, dos fatos e não descrevê-los mimeticamente, em todos os seus detalhes, com a fidelidade científica de um artista realista ou naturalista. Dom Casmurro é uma obra inteiramente impressionista (na acepção que adotamos de impressionismo; não se trata de uma nova escola literária, é uma questão de estilo). O narrador, o próprio Bentinho que vivenciou todo o drama da desconfiança de uma possível traição, tenta persuadir o leitor a se comprometer com o seu ponto de vista e, nessa sua tentativa, ele vai descrever as situações e as personagens com o olhar do “traído”, do enganado. Nada melhor do que salientar os indícios, para que o leitor tenha a visão do conjunto, pelos olhos do narrador, é claro. Como já dissemos, a narrativa se constrói a partir de suspeitas, de indícios, pois o narrador não tem fatos ou provas nas quais se sustentar. Algo bastante diferente do que se percebe na maioria dos autores realistas. O próprio Gustave Flaubert deixou claro, como cita Bosi (2006, p.169), que se esforçava “por entrar no espartilho e seguir uma linha geométrica: nenhum lirismo, nada de reflexões, ausente a personalidade do autor”. Machado, ao contrário, demonstra um estilo ziguezagueante como sugere Lúcia Miguel-Pereira.

É também com o intuito de comprometer o leitor com o ponto de vista do narrador que Machado de Assis vai fazer uso do narratário, como nos ensina Tânia Maria Centeno Braun Mendes Vianna em sua Dissertação de Mestrado em Literatura Brasileira, O Estatuto do narratário nos romances de Machado de Assis. O narratário não deve ser entendido como o leitor real, externo à obra, mas como “uma entidade pertencente ao texto, moldado por ele, afeiçoado por ele, ao mesmo tempo que lhe determinando a feição”, como explica Margarida Patriota. O fato de Machado de Assis ter feito tanto uso da figura do narratário em seus livros já o diferencia de outros autores realistas, pois a inclusão do leitor na obra (mesmo dessa forma indireta) demonstrava falta de neutralidade, de objetividade. Tânia Maria Centeno verifica que nos romances da primeira fase o narratário era mais obediente, servindo mais como um vocativo, por não dinamizar o discurso. Entretanto, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, ele se tornará um narratário resistente, pois o narrador será agressivo, tentando sempre acomodar o gosto do leitor à nova escola literária. Dessa forma o narratário servirá como um instrumento para a obtenção das condições necessárias para que o texto seja “atualizado” pelo leitor. Em Dom Casmurro, Machado demonstrará um amadurecimento na aplicação do narratário que agora se tornará o cúmplice do narrador. A autora afirma que ele servirá de isca para o envolvimento psicológico do leitor. Assim é que o leitor é forçado a participar da fantasias ciumentas do narrador no capítulo 62:

“E a alegria de Capitu confirmava a suspeita; se ela vivia alegre é que já namorava a outro, acompanhá-lo-ia com os olhos na rua, falar-lhe-ia à janela, às ave- marias, trocariam flores e...
E... quê? Sabes o que é que trocariam mais; se o não achas por ti mesmo, escusado é ler o resto do capítulo e do livro, não acharás mais nada, ainda que eu o diga com todas as letras da etimologia.” (p.94).

Da mesma forma, no capítulo 110, o espanto do narrador é transferido ao narratário na ocasião em que Capitu não se lembra de um pregão, cantiga, que prometeram não esquecer quando mais novos:

“A leitora, que ainda se lembrará das palavras, dado que me tenha lido com atenção, ficará espantada de tamanho esquecimento, tanto mais que lhe lembrarão ainda as vozes da sua infância e adolescência; haverá olvidado algumas, mas nem tudo fica na cabeça.” (p.147)

O narrador também quer que o narratário compartilhe de sua estupefação diante da resposta de Capitu no capítulo 45:

“Abane a cabeça leitor; faça todos os gestos de incredulidade. Chegue a deitar fora este livro, se o tédio já o não obrigou a isso antes; tudo é possível. Mas, se o não fez antes e só agora, fio que torne a pegar do livro e que o abra na mesma página, sem crer por isso na veracidade do autor. Todavia, não há nada mais exato. Foi assim mesmo que Capitu falou, com tais palavras e maneiras. Falou do primeiro filho, como se fosse a primeira boneca.” (p.74)

São apenas alguns exemplos para que compreendamos a natureza do narratário em Dom Casmurro. Ele se torna uma figura necessária para que o narrador sustente sua hipótese quanto a traição: ele não tem fatos determinantes a descrever, são apenas suspeitas descritas como indícios as que ele usa para convencer o interlocutor. Esse narratário vai se mostrar sempre receptivo, como salienta a autora, quando o que estiver em discussão for um ponto crucial da narrativa, e só demonstrará objeção quanto a questões periféricas que não abalem os seus argumentos. Dessa forma o leitor terá a impressão de que o ponto de vista do narrador é o correto, pois nunca serão questionadas as razões de seus ciúmes. Toda essa dinâmica objetiva a criação ou construção de um leitor ideal que deve se contentar, como sugere Tânia Maria, “com o enigma não decifrado”, pois buscar decifrá-lo e cair na armadilha construída pelo narrador.

Como bem se sabe, Machado primava pela investigação da natureza humana e por isso sua visão se caracteriza pela universalidade e não pelo localismo tão privilegiado pelo Realismo. É claro que o autor descreve a sua sociedade, o seu tempo, pois há a intenção da denúncia sempre em palimpsesto. Mas nada impede que reconheçamos características de Capitu ou de Bentinho em pessoas do nosso cotidiano, por exemplo. Quantos não conhecemos um Pádua que tenha como “alma exterior” uma função gratificada e de renome (cap. 16):

“Uma tarde entrou em nossa casa, aflito e desvairado, ia perder o lugar, porque chegara o efetivo naquela manhã. Pediu à minha mãe que velasse pelas infelizes que deixava; não podia sofrer a desgraça, matava-se.” (p.33)

Ou uma Capitu, com seus olhos oblíquos, ou com seu calculismo e determinação (cap. 31):

“Capitu quis que lhe repetisse as respostas todas do agregado, as alterações do gesto e até a pirueta, que apenas lhe contara. Pedia o som das palavras. Era minuciosa e atenta; a narração e o diálogo, tudo parecia remoer consigo. Também se pode dizer que conferia, rotulava e pregava na memória a minha exposição. (...) Capitu era Capitu, isto é, uma criatura muito particular, mais mulher do que eu era homem. Se ainda o não disse, aí fica. Se disse, fica também.” (p.52)

O estilo de Machado de Assis caracteriza-se mais por essa busca pelas “molas secretas” das reações humanas, como sugere Lúcia Miguel-Pereira (p.65), por isso, o autor preocupava-se mais em analisar as intenções, as personalidades, o caráter e o temperamento da personagens, do que em descrever minuciosamente os fatos, os ambientes, os desvios da sociedade, como faziam os escritores realistas e naturalistas. Lúcia Miguel-Pereira esclarece que, quanto ao ambiente, Machado prefere que esse se deixe perceber através das personagens e não o contrário, que as personagens sejam vistas através do ambiente, como frutos desse ambiente. Por isso é que as paisagens não são descritas, mas sentidas em função dos sentimentos da personagens. Daí uma certa tendência ao antropomorfismo, como quando Bentinho começa a conscientizar-se da natureza de seus sentimentos por Capitu, por exemplo (cap. 12):

“Um coqueiro, vendo-me inquieto e adivinhando a causa, murmurou de cima de si que não era feio que os meninos de quinze anos andassem nos cantos com as meninas de quatorze; ao contrário, os adolescentes daquela idade não tinham outro ofício, nem os cantos outra utilidade. Era um coqueiro velho, e eu cria nos coqueiros velhos, mais ainda que nos velhos livros. Pássaros, borboletas, uma cigarra que ensaiava o estio, toda a gente viva do ar era da mesma opinião.” (p.27)

Tendência já presente em “A mão e a luva”, em que afirma: “Toda alma feliz é panteísta (...)”
Consequentemente, Bentinho não sentirá conexão alguma com a casa de sua infância e adolescência, dados os desgostos por que passou ao longo da vida:

“No quintal a aroeira e a pitangueira, o poço, a caçamba velha e o lavadouro, nada sabia de mim. A casuarina era a mesma que eu deixara ao fundo, mas o tronco, em vez de reto, como outrora, tinha agora um ar de ponto de interrogação; naturalmente pasmava do intruso. Corri os olhos pelo ar, buscando algum pensamento que ali deixasse, e não achei nenhum. Ao contrário, a ramagem começou a sussurrar alguma coisa que não entendi logo, e parece que era a cantiga das manhãs novas. Ao pé dessa música sonora e jovial, ouvi também o grunhir dos porcos, espécie de troça concentrada e filosófica.” (p.180)

Suas personagens também não são fantoches ou títeres, eternamente condicionadas pelos instintos, pelo ambiente ou por necessidades fisiológicas. Machado se recusava a ignorar o elemento humano, o temperamento, a vontade, que para Lúcia Miguel-Pereira, seria o “núcleo irredutível (...) o que possuímos de mais sólido e mais pessoal” (p.76). Dessa forma, não se pode dizer que em Dom Casmurro o autor imponha às suas personagens um determinismo cerrado como se percebe em grande parte das obras realistas. O “determinismo” em Machado, por assim dizer, se transfigura em destino, um destino cujas sementes já estavam presentes em Bentinho, quando criança, no seu temperamento: um menino inseguro, facilmente influenciável pelas insinuações alheias. Ele só se dá conta de seu sentimento por Capitu ao ouvir os comentários de José Dias (cap. 12):

“Parei na varanda; ia tonto, atordoado, as pernas bambas, o coração parecendo querer sair-me pela boca fora. Não me atrevia a descer à chácara, e passar ao quintal vizinho. Comecei a andar de um lado para outro, estacando para amparar- me, e andava outra vez e estacava. Vozes confusas repetiam o discurso do José Dias:
"Sempre juntos..." "Em segredinhos..."” (p.27)

“Com que então eu amava Capitu, e Capitu a mim? Realmente, andava cosido às saias dela, mas não me ocorria nada entre nós que fosse deveras secreto.” (p.27)

“Pois, francamente, só agora entendia a comoção que me davam essas e outras confidências.” (p.28)

“Tudo isto me era agora apresentado pela boca de José Dias, que me denunciara amim mesmo, e a quem eu perdoava tudo, o mal que dissera, o mal que fizera, e o que pudesse vir de um e de outro.” (p.28)

Assim, o seu destino já estava impresso em seu temperamento: seu destino seria viver eternamente inseguro, torturado por seus ciúmes, pelas sugestões alheias, pelos indícios dos fatos cotidianos.

Semelhantemente, Machado pela pena de Bentinho, ao descrever Capitu já lhe desenhava o temperamento, a determinação, o calculismo, a voluntariosidade. Ela era “mais mulher” do que Bentinho era homem. Ela era carnívora e ele vegetariano, fazendo uso das palavras de Wilson Martins. O narrador sempre salientava os fatos em que se percebiam indícios de dissimulação em Capitu, como na ocasião do primeiro beijo que trocaram:

“Ouvimos passos no corredor; era D. Fortunata. Capitu compôs-se depressa, tão depressa que, quando a mãe apontou à porta, ela abanava a cabeça e ria. Nenhum laivo amarelo, nenhuma contração de acanhamento, um riso espontâneo e claro, que ela explicou por estas palavras alegres:(...) Assim, apanhados pela mãe, éramos dois e contrários, ela encobrindo com a palavra o que eu publicava pelo silêncio.” (p.57, 58)

Percebe-se, assim, que o destino em Machado de Assis tem mais a ver com o temperamento das personagens do que com alguma força exterior inflexível e sobrenatural. Esse destino, no entanto, muitas vezes é varado por uma “fresta”: a vontade das personagens que muitas vezes afetam o desenrolar dos fatos, de outra forma fadados à fatalidade. Sendo assim, quanto mais ousada a personagem, mais feliz o seu destino, o que, em Dom Casmurro, não se realizou na vida de Capitu, justamente pela fatalidade de algo exterior à sua vontade: a semelhança de seu filho com Escobar.

Conclui-se, dessa forma, que em Dom Casmurro, Machado de Assis foge aos padrões do Realismo na medida em que a obra impregna-se de seu forte estilo próprio. O autor, com seu estilo impressionista busca analisar psicologicamente suas personagens e, com tal objetivo, nos apresenta a figura de Bentinho, um homem atormentado pelos ciúmes de uma esposa “muito mais mulher do que ele era homem”. Para sustentar sua suspeita o narrador vai sempre interpelar o narratário com vistas ao comprometimento do leitor com a obra. Toda a narrativa é permeada não por um determinismo fatídico, mas pelo destino intimamente ligado ao temperamento da personagens. Apesar de tudo, não se pode dizer que Machado não seja realista, pois seu objetivo foi sempre captar a realidade, a visível e a invisível.


REFERÊNCIAS:

ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Editora Ática, 1998.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006.
PEREIRA, Lúcia Miguel.  Machado de Assis (Estudo Crítico-biográfico). Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1936.
VIANNA, Tânia Maria Centeno Braun Mendes.  O estatuto do narratário nos romances de Machado de Assis. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1990.
Notas de aula Realismo Brasileiro 

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