segunda-feira, 31 de julho de 2017

Cidadania no Brasil



 
Texto: CARVALHO. José Murilo de. “Introdução: Mapa da viagem.” ; “Conclusão: A cidadania na encruzilhada” Em Cidadania no Brasil O longo Caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. pp. 7-13; 219-229

            Carvalho traz uma reflexão extremamente pertinente a respeito dos caminhos percorridos pela democracia brasileira rumo à conquista da cidadania. O autor explica que o fim da ditadura militar, em 1985, criou grandes expectativas em relação aos resultados que seriam gerados pela redemocratização. No entanto, essas expectativas não foram completamente satisfeitas. Segundo Carvalho, conquistou-se a garantia da liberdade de pensamento e de manifestação e a garantia da participação pelo voto, mas ainda resta um longo caminho rumo à conquista de segurança, emprego, desenvolvimento e justiça social. Como consequência, tem-se o desgaste das instituições democráticas já implementadas.
            Para Carvalho, o que está no cerne desse descompasso é o “problema da cidadania”. O autor expliqua que “o exercício de certos direitos, como a liberdade de pensamento e o voto, não gera automaticamente o gozo de outros, como  a segurança e o emprego” (CARVALHO, 2009, p. 8). Apesar de uma cidadania plena, que alcance todas essas garantias, ser um ideal talvez inatingível, torna-se necessária enquanto norte e parâmetro. Essa cidadania plena abarcaria direitos civis, políticos e sociais. A garantia dos direitos civis (fundamentais) dependeria de uma “justiça independente, eficiente, barata e acessível a todos” (CARVALHO, 2009, p. 9). Os direitos políticos dizem respeito à participação da sociedade em seu próprio governo. Por último, os direitos sociais vinculam-se à ideia de distribuição de riquezas e justiça social.
            O autor, fazendo referência a T. A. Marshall, explica que a conquista desses direitos seguiu uma certa sequência lógica na Inglaterra: primeiramente, surgiram lá os direitos civis, depois os políticos e por fim, houve a conquista dos direitos sociais, no século XX. A educação popular, apesar de reconhecida como um direito social, foge a essa sequência, pois está na base da conquista de todos os outros direitos, por permitir que os indivíduos se reconhecessem enquanto sujeitos daqueles direitos e lutassem por eles. Carvalho assume que não há um único caminho para a construção da cidadania plena, mas afirma que caminhos diferentes geram cidadanias diferentes. Segundo o autor, o Brasil se diferencia da Inglaterra, nessa questão, por duas razões: a ênfase nos direitos sociais e a inversão completa na ordem de surgimento/implementação dos direitos.
            Em seguida, Carvalho explicita um outro aspecto histórico da cidadania: seu desenvolvimento vinculado ao surgimento do Estado-nação. Para o autor, “a construção da cidadania tem a ver com a relação das pessoas com o Estado e com a nação. [Elas] se tornavam cidadãs à medida que passavam a se sentir parte de uma nação e de um Estado” (CARVALHO, 2009, p. 12). O autor aborda a crise do Estado-nação, inserida no contexto da internacionalização do capitalismo, dos avanços tecnológicos e da criação de blocos econômicos e políticos, que acabaram por reduzir o poder dos Estados.
            No capítulo de conclusão, é retomado o problema da cidadania no Brasil. De forma mais clara, Carvalho se posiciona a respeito do caráter prejudicial daquela inversão cronológica dos direitos que aqui se deu. A implementação dos direitos sociais em um momento de “supressão dos direitos políticos e redução dos direitos civis por um ditador que se tornou popular” (CARVALHO, 2009, p. 219) criou aqui uma cultura de valorização do Poder Executivo, uma “estadania”, como o autor a denomina. Como consequência, a sociedade não valoriza a representação e vê escapar de suas mãos importantes direitos civis. Além disso, há prejuízo em sua capacidade de organização e os representantes do Poder Legislativo são desprezados, ao mesmo tempo em que são vistos como fonte de favores pessoais.
            Carvalho acredita que, apesar da gravidade da situação, há esperança para o Brasil, que ainda não sofre de mazelas mais graves, como a redução extrema do papel do Estado e o apagamento da identidade nacional, que estão afetando países da União Europeia. Para o autor, a esperança aqui reside em duas experiências que, para ele, sugerem otimismo: “o surgimento das organizações não-governamentais que, sem serem parte do governo, desenvolvem atividades de interesse público” (CARVALHO, 2009, p. 227) e experiências de prefeituras que têm procurado envolver a população na “formulação e execução de políticas públicas, sobretudo no que tange ao orçamento e às obras públicas” (CARVALHO, 2009, p. 228).        
            Por fim, o autor alerta para o risco da cultura do consumo, que ameaça o avanço democrático ao criar na sociedade uma valorização maior do direito ao consumo, do que dos direitos políticos. Segundo Carvalho, essa cultura dificulta a busca pela solução do problema da cidadania, impedindo que o sistema democrático resolva o grande problema da desigualdade que para o autor é a nova escravidão: “a desigualdade é a escravidão de hoje, o novo câncer que impede a constituição de uma sociedade democrática” (CARVALHO, 2009, p. 229).

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